Essa pergunta aparece como um fantasma recorrente em rodas de conversa, reuniões de coletivo, encontros de artistas e até no balcão da padaria quando alguém diz: “cara, pra mandar projeto nesse edital aí, precisa de CNPJ”. De repente, o que parecia apenas uma ideia bonita no papel ou um ensaio improvisado na sala da casa de alguém esbarra em uma barreira concreta: a exigência de formalização. Mas o que significa, afinal, ter um CNPJ? É só burocracia? É uma porta obrigatória? Ou pode ser também uma decisão estratégica sobre que tipo de organização queremos ser?
O Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica é, tecnicamente, a certidão de nascimento de uma entidade ou empresa. É o que garante que uma atividade econômica ou social possa existir oficialmente, emitir nota fiscal, assinar contratos, contratar funcionários e, claro, ser tributada. Para o pequeno empreendedor individual, existe o MEI, que simplifica o processo e permite a formalização de quem presta serviços ou vende produtos. Nesse formato, muita gente da cultura e das artes encontra um caminho para emitir recibos, prestar contas em projetos menores e acessar editais que aceitam pessoas físicas juridicamente simplificadas. É o caso do músico que toca em bares e precisa emitir nota, ou da fotógrafa que começa a trabalhar com casamentos e quer formalizar sua atividade. O MEI resolve, mas tem limites de faturamento e de escopo, e não serve para todo mundo.
Quando o passo é maior e envolve a criação de uma estrutura mais robusta, surge a figura da sociedade limitada, a famosa LTDA. Tradicionalmente pensada para sócios que dividem cotas, responsabilidades e riscos, ela também pode ser constituída hoje por uma única pessoa, no formato de Sociedade Limitada Unipessoal (SLU). Em qualquer das duas situações, trata-se de um modelo empresarial que exige contabilidade regular e obrigações fiscais mais complexas, mas que oferece também maior margem de crescimento, de segurança patrimonial e de profissionalização. É a escolha de quem quer se posicionar como empresa no mercado, estruturar uma produtora cultural, uma empresa de eventos, uma agência de comunicação — e, quem sabe, futuramente captar clientes maiores ou até buscar investidores.
Mas nem sempre a lógica é do lucro. Muitas vezes estamos falando de grupos, coletivos, comunidades que querem desenvolver atividades sociais, culturais ou educacionais, sem a intenção de distribuir resultados entre sócios. Nesse cenário, a forma mais comum é a associação sem fins lucrativos. Ela nasce do desejo de pessoas que se organizam em torno de um objetivo comum e definem, em estatuto, como vão decidir, quem pode ser associado, como se dá a eleição da diretoria e qual será a vida política da entidade. É o modelo preferido de coletivos culturais que querem acessar editais públicos, firmar convênios com secretarias de governo, captar recursos via leis de incentivo. A associação, no entanto, traz consigo a necessidade de vida associativa: assembleias, conselhos, prestação de contas aos associados. Não adianta abrir só para cumprir edital — se não houver prática política e envolvimento coletivo, ela se torna um cartório vazio.
Há também a figura da fundação, mais rara, mas muito importante. Ela costuma nascer de um patrimônio destinado a um fim específico — educacional, cultural, científico, social — e é fiscalizada de perto pelo Ministério Público. É mais robusta, exige recursos iniciais e estrutura maior, mas confere legitimidade e estabilidade de longo prazo. Muitas instituições reconhecidas no país são fundações: bibliotecas, museus, centros culturais. Não é a escolha mais comum para grupos iniciantes, mas mostra como a natureza jurídica também expressa um projeto de futuro.
A questão central, portanto, não é apenas se é preciso ou não ter um CNPJ para captar recursos. Claro que, em muitas oportunidades, a resposta é sim: editais, patrocínios incentivados, convênios governamentais quase sempre exigem uma pessoa jurídica. Mas a pergunta mais profunda é por que formalizar um CNPJ e qual modelo traduz melhor os propósitos do que se quer construir. Se o foco é prestar serviços de forma individual, o MEI pode bastar. Se a meta é criar uma empresa criativa que se sustente no mercado, a LTDA — seja em formato clássico, seja unipessoal — pode ser o caminho. Se a proposta é fortalecer o trabalho coletivo e acessar políticas públicas de fomento, a associação faz sentido. E se há um projeto de grande envergadura, com patrimônio inicial e missão institucional forte, a fundação pode ser o formato adequado.
O erro comum é criar uma estrutura apenas para cumprir a exigência do edital, sem refletir sobre suas implicações. Abrir uma associação sem vida associativa real, formalizar um MEI sem considerar os limites tributários, montar uma empresa sem plano de sustentabilidade. Cada escolha carrega responsabilidades, e ignorá-las pode comprometer a trajetória em vez de fortalecê-la. No fundo, o CNPJ é menos uma resposta burocrática e mais uma declaração política e estratégica. É dizer ao mundo e ao Estado: “é assim que quero existir, é assim que quero me organizar”. Por isso, ao se perguntar se precisa de um CNPJ para captar recursos, talvez valha inverter a lógica e perguntar: que projeto de futuro quero sustentar, e como a formalização pode ser aliada nesse caminho? O CNPJ pode abrir portas, mas também delimita caminhos. Saber escolher a porta certa pode ser a diferença entre uma formalidade vazia e um passo firme na construção de uma história coletiva.